
Processos - Construção de retrato de Maria Felipa de Oliveira
Em meados de 2023 a artista Stefany Lima, foi convidada pela caixa cultural para compor a exposição Mulheres que Mudaram 200 anos (da história do Brasil) na caixa cultural do Recife, trazendo um percurso artístico, histórico e biográfico de mulheres que mudaram o curso do país. Imagino que tal convite tenha sido recebido por ela com certa alegria, pois vinda da arte de rua de São Paulo para Recife, Stefany estava acostumada a pintar murais em grandes ruas e em pequenos muros em comunidades mais pobres, muitas vezes levando sua própria tinta, visto que sempre acreditou na arte como um agente transformador dos espaços e da integração social. Certa feita, eu mesmo testemunhei ela recusar a venda de uma obra em uma galeria bem conceituada em Recife por acreditar que aquela obra não deveria estar ali, uma vez que o público ao qual a obra era destinada não seria bem vindo naquele espaço. Vi ela voltar para casa trazendo a outra obra que seguia o briefing passado pela galeria, e que ela tinha feito especificamente para ser exposta lá, quando na verdade eles queriam a obra que ela já tinha pronta. Conseguir estar, depois disso, em um lugar socialmente reverenciado como um "ambiente de arte" e recebendo por isso além ter finalmente um vernissage a impressionou bem menos do que ter a chance de retratar a Maria Felipa, personagem que eu não conhecia até então. Coisa que me intrigou.
Foi proposto à artista retratar uma personagem histórica pouco conhecida, como grande parte dos personagens negros na história do Brasil, a Maria Felipa de Oliveira. Pescadora, marisqueira e capoeirista e que, por volta de 1822, liderou um levante contra os colonizadores na Ilha de Itaparica (BA), incendiando embarcações que estavam prontas para invadir e reprimir as revoltas em Salvador e cujo os retratos que lhe eram atribuídos eram apócrifos, ou seja, ou não havia certeza da veracidade do mesmo (em alguns casos) ou a veracidade do retrato já havia sido descartada (em outros casos). Por ser amigo de Stefany há muitos anos e termos costume de conversar sobre arte plástica, fotografia, filosofia e música no geral, fiquei muito impressionado com sua empolgação nesse processo. Vi brilhar nos seus olhos uma criança que imagina os personagens de um grande livro como sendo parecida consigo e se imagina naquelas histórias. Ela ficou muito animada, fazendo muitas pesquisas e lendo bastante. Acho que ela imaginou a importância de crianças olharem para aqueles retratos enquanto leem as histórias e bravatas da grande Maria Felipa de Oliveira se imaginando naquele lugar. Maria Felipa representa uma vitória da história oral, sobre a história escrita tradicional, a contada, sobretudo, pelos poderosos. Representava a arte de rua sendo reconhecida enquanto arte e compondo telas.
Na época duas coisas me interessavam bastante: história do cotidiano e fotografia no geral, sobretudo fotografia do cotidiano. Eu estava em uma fase de ler livros de histórias do cotidiano da Mary Del Priori, e tinha lido livros como o tempo e o vento, em que eu sempre imaginava os personagens. Afora isso, eu estava começando na fotografia. Amo essa frase pré-fotografia na história em que as pessoas eram retratadas por artistas plásticos, pois te permite sonhar e imaginar as coisas, a partir das pinturas, é bem verdade, mas a fotografia é mais crua e tira um pouco dessa componente imaginária da realidade (não sempre). Eu comecei a refletir bastante sobre como deveria se parecer a Maria Felipa, a partir da sua idade, da quantidade de filhos que ela tinha, de suas origens… A classe social não era tão determinante nesse aspecto (estético), pois o baixo nível de higiene e da medicina da época juntava todo mundo em um grande rebanho de condenados, coisa que não ocorre mais atualmente.
Acertamos que eu ia fazer alguns registros desse processo e fizemos as fotografias em duas noites em que nós basicamente conversávamos enquanto eu fotografava e Stefany pintava. Eu tinha a ideia de querer fotografá-la livremente tentando pegar toda espontaneidade de uma artista em seu ambiente criativo, mas sobretudo sua técnica. Com a mestria de um enxadrista que já calculou as variantes na sua cabeça e mexer as peças para executar os lances era apenas algo mais mecânico do que intelectual, Stefany executava as pinceladas com naturalidade e segurança, como se já tivesse pintado aquela tela várias vezes, como alguém que anda em sua própria casa no escuro sem esbarrar em nada.
Eu tinha levado equipamentos de iluminação como luzes e softbox, mas decidi rapidamente por reduzir minha influência ao mínimo possível usando como fontes de luz apenas a luz cálida, com a qual ela pintava e por vezes uma fraca luz de lanterna de celular para preencher um pouco. Talvez a maior influência que eu tenha dado ao ambiente era uma música de Edu Lobo que eu estava escutando bastante naquela semana e coloquei no caixinha de som repetidamente durante toda a noite:
Coração Noturno
Meu coração bate lento
Como se fosse um pandeiro
Marcando meu sentimento
Retendo meu desespero
Como notícia do vento
Passando no meu cabelo
Meu coração bate lento
Meu coração bate claro
Como se fosse um martelo
Num rumo sem paralelo
Selando meu desamparo
Numa corrente sem elo
Numa aflição sem reparo
Meu coração bate claro
Meu coração bate quieto
Como se fosse um regato
Vagando pelo deserto
Sangrando no meu retrato
Abrindo meu desacato
Num ferimento coberto
Meu coração bate tão quieto
Meu coração bate negro
Como cantiga sem mote
Como a serpente num bote
Rompendo no meu sossego
Lambendo feito chicote
Noturno feito morcego
Meu coração bate negro
Lambendo feito chicote
Noturno feito morcego
Meu coração bate negro
Lambendo feito chicote
Noturno feito morcego
Meu coração bate negro
O quanto essa música pode ter influenciado o retrato da Maria Felipa, eu não consigo avaliar, mas na forma como eu fotografei, eu diria que influenciou bastante, pois, meu coração noturno batia, lento, claro, quieto e sobretudo Negro. E eu pude entender essa letra de Edu Lobo em sua total completude naquele momento. Muito por influência dessa música eu escolhi explorar um "low key" e mergulhar a Stefany e sua obra em um mar de silêncio, quietude e sombra, que é, conhecendo Stefany a tanto tempo, onde a cabeça dela ganha liberdade para viajar livremente.
A arte não é objeto em si, na minha concepção, é a relação de sujeito e objeto. A partir dessa concepção eu sempre costumo comprar obras de artistas que eu conheço e tenha conversado sobre os processos criativos da obra, a Stefany, não por acaso, é a artista plástica que eu mais tenho obras. Nas fotos além do silêncio, da naturalidade e da técnica eu passei a observar paulatinamente o olhar da artista à medida que a Maria Felipa tomava forma pincelada a pincelada e como era a relação entre criador e criatura. Em certa medida eu confesso que me perdi em quem era quem, pois havia certa deferência e certo respeito à medida que a Maria era construída. Em certa medida, era como se a Maria Felipa fosse uma das entidades cultuadas na Jurema das quais eu já tinha ouvido nas cantorias e tinha sido apresentado em conversas com a própria Stefany. Era como se eu tivesse vendo uma Rosa Palmeirão mas com um olhar doce de alguém que mesmo conhecendo o pior do mundo, não para de se impressionar positivamente com ele. Bom, esse olhar, em certa medida, era um reflexo. Toda obra, no fim das contas, é uma confissão, um auto retrato. Pois.
O retoque e a concepção estética da fotografia visou juntar criatura e criação na mesma obra. Eu busquei reduzir ao mínimo toda a crueza que o excesso de nitidez e luz traz às fotos e trazer a finalização que finalmente juntasse ambas.


























