A fotografia contemporânea tem trazido à tona várias questões, algumas atuais e outras nem tanto, em que precisamos nos debruçar atentamente, por exemplo: Imagens hiper-realistas construídas por inteligências artificiais são fotografias? A fotografia é um resultado ou um processo? A fotografia é o objeto em si, ou uma relação entre sujeito e objeto? É inconteste que a fotografia resulta de um binômio entre a tecnologia e o “humano”, mas quem pesa mais? Acredito que a maioria dos fotógrafos, se perguntados, tende a exaltar o fator humano por um motivo muito óbvio e prático. Muito embora seja possível que a mesma maioria, na prática, relacione a fotografia diretamente aos preços dos equipamentos e aos sofisticados softwares de edição mais do que o olhar humano. É inegável que as redes sociais, como instagram, têm contribuído sobremaneira para uma padronização estética na fotografia seja na padronização de poses cada vez mais publicitárias, seja nos formatos que o instagram suporta, que faz com que fotógrafos do mundo inteiro passem a pensar o enquadramento para os formatos suportados e a pensar suas fotos para celular e não mais para impressão ou em formatos mais livres, mas sobretudo por ser uma revista onde todo mundo vende uma imagem, os ensaios e fotos pensadas para essa rede social exige cada vez mais tratamento e edição a ponto de as nuances das feições humanas se perderem cada vez mais em edições do tipo fine art.
O primeiro grande caso que se tem conhecimento sobre o efeito etéreo de uma imagem na humanidade está relatado por Ovídio e repousa no seio da mitologia grega, a história de Narciso. Acredito que se Narciso estivesse munido de de uma objetiva e pudesse registrar, ele, sem sombra de dúvidas, seria reconhecido como um fotógrafo. Acredito que seja imprecisa a ideia de que Narciso tenha se apaixonado e passado tantos anos olhando apenas sua própria imagem refletida na face do rio. Prefiro pensar que ele se apaixonou pela composição, pelas sombras, pelo contraste, pela paleta que mudava constantemente com a luz e as estações do ano. Acredito que em alguns momento sua imagem foi o assunto de sua fotografia, mas com o passar dos anos foi-se diluindo no quadro como um todo e recomeçando o ciclo em que viramos assunto para nós mesmos e depois nos diluímos no mundo em cada fase da nossa vida. Essa paixão de Narciso, creio eu, foi pelos reencontros consigo mesmo personificado na própria imagem refletida. A fotografia nos permite ser autoral e revolucionário registrando uma viagem ao redor do mundo fotografando todo dia assuntos diferentes ou em um mesmo lugar fotografando a mesma árvore todos os dias. Narciso foi o primeiro fotógrafo que se tem registro, por mais que suas imagens só tenham fulgurado em sua mente e haja discordâncias, pois a fotografia está muito atrelada a processos químicos de captura em superfícies fotossensíveis. Tenhamos em mente que a superfície do rio é fotossensível em seu remanso. Se isso não bastar, usarei um aforismo atribuído ao famoso fotógrafo Cartier-Bresson, que teria afirmado em uma entrevista, como relata Pierre Assouline em seu Livro “Cartier-Bresson o olhar do século: “Acabei de tirar uma foto de você, mas sem câmera, o que dá no mesmo.”
Atualmente têm surgido muitos casos de fotógrafos reconhecidos e premiados que atribuem suas imagens às inteligências artificiais proliferando assim vários prognósticos assustadores sobre o futuro da fotografia e da arte de uma maneira geral, bem como questões éticas sobre o uso indiscriminado dessas ferramentas. De prognósticos negativos a fotografia já vive faz tempo, a cada avanço tecnológico surgem novos. Com a proliferação das câmeras em smartphones de baixo custo no início dos anos 2000 muitos acreditaram que não haveria mais espaço para fotógrafos e retratistas. De fato, a fotografia tal qual era antes dos anos 2000 não existe mais. O fotógrafo como o único profissional capaz de registrar imagens não mais existe. Mas a função da fotografia foi resinificada e graças ao surgimento das redes sociais e a proliferação de perfis, nunca se fotografou tanto e tão bem, em média, no mundo e a fotografia profissional passou a se destacar muito acima da fotografia “comum”. As pessoas passaram a ser mais exigentes quanto ao papel da fotografia profissional. Se anteriormente era necessário apenas ter um equipamento para ser considerado fotógrafo, hoje, de certa forma, todo mundo o tem, é necessário outros conhecimentos, o que acabou distinguindo os bons profissionais. Eu acredito que nunca se teve tanto conhecimento sobre a fotografia quanto se tem hoje. Não se chama mais um fotógrafo para se ter registros, apenas. Se chama para ter bons registros de determinado estilo, com determinado tratamento e com uma assinatura característica do artista.
Mas agora vamos ao cerne da questão: e as imagens hiperrealistas advindas da inteligência artificial? Eu penso que há uma região fronteiriça entre a fotografia artificial e a fotografia humana em que é muito difícil distinguir uma da outra. Nessa região está a fotografia fine art, que já vai no sentido de buscar uma perfeição “não-humana” em seus tratamentos e edições e, por vezes, já mescla a realidade com a ficção.Quem nunca viu uns ensaios de gestantes ou mesmo em estúdio que usam técnicas que anteriormente só se usava em alta publicidade e moda? Ou seja, o excessivo uso de técnica torna nossa fotografia cada vez mais virtual. Em outro extremo, nas fotografias mais antigas, como as feitas em daguerreótipo é quase impossível de saber se uma reprodução é original ou foi produzida por uma IA, sobretudo por ser difícil encontrar certas incongruências com a “realidade”, o que quer que seja isso, uma vez que as imagens já são naturalmente pouco nítidas e detalhadas. Recentemente, inclusive, um fotógrafo alemão participante do Sony World Photography Awards 2023, que reconhece as melhores fotos individuais de 2022, rejeitou o prêmio ao revelar que sua imagem vencedora no concurso foi, na verdade, gerada por IA. Um comunicado de imprensa da Sony descreveu a imagem como “um retrato em preto e branco assombroso de duas mulheres de diferentes gerações, reminiscente da linguagem visual dos retratos de família dos anos 1940. Vale a pena procurar no google e ver a imagem.
Eu acredito que a fotografia artificial, como eu passei a chamar as imagens produzidas por inteligência artificial, deve ser integrada paulatinamente à fotografia como um todo, seja como ferramenta, a fim de auxiliar fotógrafos com algumas ideias (por exemplo, ao invés de usar a fotografia artificial, o fotógrafo alemão supracitado poderia usar a ideia e produzir algo seu a partir disso. Acredito que se ele tivesse apenas reproduzido a ideia ele não teria se abstido de receber o prêmio. Os humanos já não buscam inspiração no trabalho dos outros seja na música, na literatura, no cinema, no xadrez e na própria fotografia?), ou como um fim em si mesma, como uma fotografia artificial de fato, poderia haver competições para esse tipo de fotografia, que poderá ser amplamente utilizada em publicidade e mesmo para auxiliar artistas visuais a pensarem suas produções.
A fotografia artificial tem sua componente humana, como toda a fotografia, pois ela aprende conosco. A busca pela indistinguibilidade dela com relação à fotografia humana só corrobora essa tese. Em geral essas plataformas têm grande banco de dados que nós mesmos alimentamos na internet postando nossas imagens, informando que somos fotógrafos, com hashtags que indicam se tratar de um retrato, preto e branco em fine art, por exemplo. Se a fotografia continuar indo pelo caminho de almejar a perfeição técnica e a reprodução de padrões que gerem engajamento, nunca seremos melhores do que as máquinas, pois não somos melhores do que elas em reconhecer e interpretar padrões nem temos os dados estatísticos que as alimentam a fim de prever o engajamento que aquela imagem vai ter (As IA’s já superaram os humanos em um nível impossível de serem alcançadas por nós no xadrez, por exemplo). Em suma: Se a fotografia para você é ir no Pinterest, procurar algumas poses padrões, reproduzir e depois fazer uma edição padronizada e sofisticada no photoshop, acredite, as máquinas fazem isso bem melhor, pois identificam mais padrões e mais rápido além de ter formas mais eficientes de gerar engajamento. Mas se sua fotografia for no sentido de registrar o cotidiano e prever a cena, essa cumplicidade entre previsão e acaso, como disse Stuart Mill, ainda estará a salvo e em um terreno esconso para as máquinas. Coloque uma Câmera em um robô e uma nas mãos de um bom fotógrafo e solte ambos na rua. Com as capacidades de processamento atuais e toda complexidade de variáveis que envolvem a realidade o computador ainda não consegue lidar. E não conseguirá por um tempo, talvez nunca. Já o humano consegue olhar para duas pessoas e perceber que elas estão intrigadas e se olharam curiosamente, com a curiosidade rapidamente dando lugar a uma tensão de quem acabou de reconhecer um amigo há muito não visto e vão correr para se abraçar, escolher o ângulo, configurar a câmera e fotografar o momento exato. A fotografia criativa e de registro do cotidiano é um terreno ainda muito fértil para a fotografia humana.
Pois ainda nos resta uma questão para finalizarmos esse texto já tedioso: onde entra Narciso nessa história toda? Se reconhecemos que Narciso, mesmo sem câmeras, tratamento e edição era um fotógrafo e que o que ele estava vendo refletidas no lago eram fotografias, entendemos que a fotografia não é objeto em si, mas a relação entre sujeito e objeto, com primazia do olhar humano sobre a técnica. A Inteligência artificial, por outro lado, seria o contrário do Narciso, pois há registro, muita técnica mas não há uma relação entre sujeito e objeto, pois mesmo tendo supracitado que a fotografia virtual tem como base o humano, esse humano não seria uma indivíduo, seria uma consciência artificial criada a partir de dados humanos de buscas, likes e engajamento. Dependendo de quem, onde e que banco de dados se pesquisa temos imagens diferentes para os mesmos parâmetros de busca. A fotografia produzida pelas IA ‘s representa a primazia da técnica sobre o olhar humano, agora diluído e nela não há uma relação entre sujeito e objeto, há o objeto em si.

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