Antes de qualquer coisa, a resposta é: provavelmente não. Fiquem calmos. Mas para isso será necessário um considerável esforço da nossa parte enquanto usuários da internet. Antes de tudo, contextualizemos: Hoje eu estava debatendo em um grupo de whatsapp com alguns amigos, como a inteligência artificial tem dizimado algumas profissões e chegou-se a conclusões alarmantes sobre as prospecções de todo o estrago que será causado, sobretudo nas classes médias, com o avanço de tal tecnologia. Pessimistas demais, penso eu. Sim, muitas profissões estão ameaçadas. Mas será que isso também representará o fim das profissões mais criativas como a fotografia, o designer e a escrita, por exemplo?
Foi pontuado no grupo que determinada tecnologia de IA, vou preferir me referir assim doravante, já conseguia replicar traços de van Gogh e de outros artistas de modo que seria muito difícil até para estudiosos desses artistas perceberem diferenças. Eu realmente não li sobre isso e não verifiquei se tais afirmações são de fato verdadeiras, caro leitor, mas assumamos que de fato sejam, sabemos que em noite de sexta-feira 13 qualquer barulho é fantasma. Tentemos sair da caverna e ver o que há lá fora.
A maioria das tecnologias de IA armazenam e processam dados de milhões de pessoas, milhões de textos escritos, imagens, informações de engajamento e na própria reprodução de padrões por repetição em memes e trends e, a partir disso, entrega o que se pede. Se mandássemos reproduzir uma obra de Van Gogh com certeza seria baseado nos traços que Van Gogh já produziu, de fato. Mas se estivesse van Gogh vivo, ele teria o mesmo traço mesmo depois de absorver parte do conhecimento do andamento da história da arte e de ter absorvido outras culturas que só temos acesso hoje? Dificilmente; Continuaria Mozart a compor música clássica se estivesse ainda vivo? Acredito que não. A história de Mozart nos mostra que ele tendia a absorver a maioria dos sons existentes, acho mais provável que ele fosse DJ e dispusesse de um teclado e sintetizadores para samplear o maior número dos sons possível. A orquestra era o que de mais completo existia na época em termo de sistematização do estudo, produção e da reprodução de música, afora o fato de que dava a ele sustento, status, e estabilidade para produzir. Acredito que “apenas” por isso, o que, convenhamos, não é pouco, ele tenha se enveredado por esse caminho, coisa que não ocorreria hoje, não para pessoas como Mozart. A maioria de nós se daria por satisfeito. O que faz alguém querer escrever mesmo depois de tanta coisa escrita sobre vários temas à exaustão? É achar que, embora Garcia Marquez beire a perfeição para mim, eu vivo em um mundo que ele não vive. Se ele acordasse hoje ele não saberia lidar com a dinâmica do mundo, mas eu estou vivo e posso retratar o mundo de uma forma que só eu vejo. Acredito que é dessa crença que se alimentam os artistas. Uma das reflexões mais imediatas que a proliferação das tecnologias de IAs vem a nos trazer é que precisamos parar reverenciar o passado pois ele já está posto. O futuro ainda se põe, ou nasce, dependendo de como prefira ver o mundo.
A IA generativa é sim uma ameaça a muitas profissões. Profissões como as voltadas para atendimento ao cliente e dublagens, por exemplo, podem estar realmente com os dias contados, sendo bem otimista, uma vez que eu mesmo posso fornecer à tecnologia de IA minha voz e ela fazer dublagens de vídeos e traduções de música já respeitando os traços rítmicos da cultura do país no qual eu queira me inserir no mercado, ou mesmo as empresas podem alimentar as tecnologias de IAs que produzem chatbots com o histórico de diálogo entre clientes e seus funcionários a fim de otimizá-la. Mas e as funções mais criativas? Para que as áreas criativas consigam se manter, será necessário que paremos de alimentar essas tecnologias com nossa forma de pensar, engajar e produzir. Pensemos: O que aconteceria se deixássemos todos de compartilhar nossas informações de maneira indiscriminada na internet? Em alguns anos essas tecnologias estariam desatualizadas e criariam produtos pensando em um mercado que não mais existe e num tipo de engajamento e padrões estéticos já anacrônicos. Embora essa seja uma solução “por força bruta”, resolve. Uma outra alternativa mais elegante de resolver a questão depende de um esforço global: é a de que passemos a exigir que as plataformas que compartilhamos nossas informações parem de compartilhar nossos dados com tais empresas que produzem essas tecnologias.
Acredito que no futuro próximo, plataformas como o Behance e o próprio Meta sejam forçados a perguntar a cada usuário se o mesmo gostaria de alimentar tais iniciativas com seus dados. Acredito ainda que serão criados protocolos para que saibamos se determinado site é seguro para nossos dados ou não. Da mesma forma que usamos hoje o protocolo HTTPS, poderá surgir, e talvez até já exista, um protocolo do tipo HTTPSC (de closed) que sinalize que aquelas informações não possam ser colhidas por tecnologias de IAs. Acredito que se isso não acontecer, surgirão plataformas e redes sociais fechadas a essas tecnologias. Assim sendo, um produtor de música, um designer e um escritor poderão escolher em que plataforma compartilhará suas produções e, se for alimentar essas IAs, que ganhem para tal.
Talvez possa ser que o volume de informação que elas já dispunham seja tão grande (vale lembrar que provavelmente tudo que é de domínio público pode ser usado livremente, então elas partiriam basicamente de 50 anos atrás) a ponto de fazer com elas aprendam consigo mesmas e passem a escrever melhor até do que nós, como no caso do Xadrez que IAs baseadas em machine learning e redes neurais alcançam níveis de jogo bem acima das que aprenderam a jogar com nossos bancos de dados. Esse é um risco que prefiro correr. Se for para produzirem algo que supostamente seja melhor do que o que eu produzo, que não tenha aprendido comigo, e ainda pior, sem que eu tenha recebido absolutamente nada por isso.
Mais uma reflexão cabe aqui: será que as plataformas que entregam nossos dados de gostos estéticos e da forma como interagimos com determinados conteúdos, fazem isso de graça? Será que as fotografias que colocamos nas nuvens e que são privadas estão a salvo uma vez que as grandes empresas como a google tem seus próprios projetos de tecnologia de IA? É necessário que essas questões sejam respondidas e discutidas para que as tecnologias de IA ocupem o lugar que devem ocupar: uma ferramenta para otimizar o trabalho humano e não substituí-lo. E se for para substituí-lo, que seja por sua capacidade enorme de processar a realidade atual a partir do que é domínio público. Seria interessante ver. Talvez venham a surgir daí outras formas de arte, de música e de linguagens. Quem sabe? Mas que não seja uma cópia, focada no mainstream, do que a humanidade tem produzido e aperfeiçoado por muitos séculos, ou pelo menos nos últimos 50 anos.